Pintura Cabo Verdiana
A pintura em Cabo Verde não teve uma força e uma presença relevante no período colonial como aconteceu com a literatura, mas foi marcada por alguns momentos altos e alguns pintores de mérito, segundo refere Danny Spínola.
A história da pintura cabo-verdiana só ganhou contornos após a independência nacional, em que houve uma certa massificação e encorajamento no sentido de se investir em tudo o que seja cultura autóctone, tendo, por conseguinte, surgida a fase do grito de liberdade e de busca das raízes, na qual imperou a febre do nacionalismo revolucionário. Esse período está impregnado de pinturas nativistas e intervencionistas – na linha da arte comprometida, engajada – em que sobressaem: como que em cânticos, figuras de heróis-pátrios e universais, paisagens agrestes e ressequidas; cenas de trabalhos vários, alguns de cariz esclavagista, e do realismo social; aspectos degradantes da sociedade, como a fome e a miséria; e o canto à luta e à liberdade, a par do retrato fiel de paisagens pitorescas e da natureza morta, realistas e impressionistas. Nessa esteira encontram-se Domingos Luísa, Lú di Pála, Ruja, José Maria Barreto, Pedro Martins e Osvaldo Azevedo, entre vários outros. Com a crescente abertura do espaço ilhéu cabo-verdiano ao mundo, quer através de formação no exterior, quer com exposições de pintores caboverdianos em outros países e das de artistas de outras latitudes em Cabo Verde, quer ainda com o advento dos meios de comunicação social, que possibilitaram a diluição de fronteiras físicas e o contacto permanente com outras realidades, a pintura cabo-verdiana sofreu uma evolução considerável na peugada da modernidade reinante. Assim é que nos deparamos, de há vinte anos para cá, com uma movimentação constante de artistas plásticos cabo-verdianos dentro e fora do país, sendo de se destacar o papel dos prémios nessa prolífera criatividade, que se consubstancia, muitas vezes, em obras de mérito, na linha dos mais modernistas pintores contemporâneos. Realmente, a arte visual em Cabo Verde, mais concretamente a pintura, tem conhecido, nos últimos tempos, uma fase bastante dinâmica e interessante, marcada por grandes transformações ao nível da performance estritamente pictórica e ao nível de um recrudescimento impressionante quanto à realização de exposições, que se vêm repercutindo de forma salutar, pedagógica e satisfatória, interactivamente, no seio da população, a qual tem manifestado, por sua vez, um maior interesse por essa actividade e uma cultura um pouco mais requintada no que concerne à apreciação da arte, enquanto produto eminentemente estético e criativo, e não meramente utilitário.
As exposições de pintura têm sido, ultimamente, uma constante em Cabo Verde, pautando, quase todas elas, por uma linguagem nova e inusitada, tendo em conta, inclusive, a quase inexistente tradição desse labor no nosso meio cultural. Não há dúvida que Manuel Figueira é um poeta da pintura, que utiliza as cores, os traços, as estruturas e composições metaforicamente, isto é, em comunicações plenas de significados e repletas de sugestões, enfim, em verdadeiras poesias de mensagens perenes. O seu objetivo é ter Cabo Verde em tudo o que faz, mas sempre pela via da universalização, pelo que tem vindo a dedicar uma especial atenção aos prédios da cidade do Mindelo, os quais, segundo ele, têm uma história interessante. Os temas dos seus quadros são bastante heterogéneos e abarcam uma extensão significativa das principais questões sociais da vivência caboverdiana, numa radiografia psico-filosófica, sui generis, do homem caboverdiano, não despiciendo de uma sátira mordaz e humorística a determinadas situações caricatas e ridículas.
Dentro dessas excepções podemos enquadrar ainda os seguintes pintores:
Domingos Luisa, José Maria Barreto e Mário Lúcio. Artista ecléctico, com um extraordinário domínio da técnica da pintura, Domingos Luísa tem experimentado vários estilos de pintura, tendo já feito várias exposições com quadros do género cubista e picassiano, do tipo surrealista ou daliniano, e ainda na linha dos expressionistas, dos impressionistas e de um certo informalismo. Sendo os seus quadros de intensa plasticidade temática e de profunda expressividade, temos a sensação, quando os apreciamos, de que mantêm um diálogo coloquial e intimista connosco, criando uma aura de forte empatia e sintonia. Sentimonos como se, de repente, tivéssemos adquirido o poder da ubiquidade e da telepatia, diluindo-se o nosso espaço-tempo presente e real no espaço-tempo imanente dos quadros, onde nos integramos e convivemos.
Artista de fina sensibilidade, José Maria Barreto consegue imprimir uma dinâmica e uma dialética inusitadas aos seus quadros, utilizando com mestria as técnicas do jogo de luz e de sombra e do claro-escuro, através dos seus traços e esbatidos que se multiplicam ao mesmo tempo que se contêm e se conjugam, criando toda uma trama de perspetiva, de contornos e de tonalidades que fazem determinadas expressões e movimentos adquirirem um significado próprio e uma determinada força sugestiva. Pressente-se, lá no fundo, toda uma palpitação latente, mensageira, impulsiva, que acaba por ser domada, controlada e equilibrada, em nuances bicromáticas sobre um fundo multicolor de um universo a preto e branco. Na linha da nova vaga de pintores cabo-verdianos que persegue o abstracionismo, vamos encontrar Mário Lúcio com quadros de figurações abstratas e expressionistas, cheias de empastes e manchas de tintas, ou com sobreposições de linhas e de riscos, ou de explosões de cores exuberantes, mescladas de algumas formas figurativas, mas muito esbatidas ou labirínticas, ou um pouco à moda do “Ation Painting” de Pollock. Pode-se, ainda, dentro dessa vaga de pintores cabo-verdianos modernistas contemporâneos, destacar-se o nome de Djosa e a sua pintura onírica e fantástica, com uma forma e um estilo muito próprio de pintar, embora seguindo um certo geometrismo e interseccionismo figurativo; e também o de Paulo Rosa, com a sua linha à moda dos impressionistas ou mais próximo ainda dos simbolistas, às vezes, com um estilo de pintura que parece primitivo, com contornos bem delineados mas sem uma forma figurativa nítida, ou concreta, em que predominam os temas sociais e populares, às vezes com pinceladas que apenas sugerem alguma coisa:
silhuetas de pessoas ou de coisas sobre um fundo indefinido de cores brilhantes ou pálidas, em geral claras, em superfícies planas. Quanto aos pintores da diáspora, é de se dizer que todos eles possuem um ponto em comum que os define e caracteriza quanto à originalidade e personalidade dos seus quadros, na ótica de um pressuposto identitário. Será que poderemos falar, nesses casos, de pintura cabo-verdiana, ou então, simplesmente, de pintores cabo-verdianos de mimésis puramente universal, visto que a maioria das exposições feita por esses artistas é impregnada por ressonâncias quase que diretas do novo género de arte surgido nos E.U.A e na Europa após os anos 50/60, que rompe totalmente com as pinturas do século passado – muito aprumadas e naturalistas - exactamente por se revestirem dessa nova figuratividade, marcada pelas subversões e deformações, pelas iconografias (como fontes de informações), pelos efeitos contrastantes das cores luminescentes e baças, ou das manchas amontoadas, fusiformes e esbatidas que proporcionam, invariavelmente, leituras múltiplas e pessoais, convergidas, não obstante, a um certo existencialismo, angústia, contradição, dilaceramento e conflitos interiores, isto é, a um certo desencontro e procura, a uma certa inconformidade e desaire. É também o caso de Mito e do seu ecletismo estético, que vai do expressionismo, patente na utilização das cores e de transfigurações, estas muitas vezes em jeito dadaísta, à exacerbação da interioridade e ao abstrcionismo expressionista, geométrico e conceptual, expressos nas cores, nas formas, nos anti-figurativos, nos escrituralismos e nas transgressões das coisas e da realidade. David Levy e Kiki Lima, por outro lado, são os mestres da técnica de pintura difusa, sem contornos bem definidos e que exploram a vivência sociocultural de Cabo verde na linha de uma certa estranheza e da performance impressionista, compondo as suas estruturas pictóricas baseadas em decomposições de cores a partir de camadas carregadas e pastosas de tintas, ou de cores sobrepostas e esbatidas.
E desse conjunto não escapa Xand Silva, mais um exemplo dessas exposições que nos puxam pelos cabelos e nos arrastam pela estrada da nossa interioridade em busca de um sonho, de uma fantasia, ou mesmo de um silêncio ou de um grito que nos permite a intelecção do que vemos e, consequentemente, uma interpretação mais comedida com a intuição inconsciente ou conscientemente processada pelo artista e pela sua estética sugestiva, psicanalítica. Com predominância de uma técnica mista, ele usa também as técnicas do óleo sobre tela, do acrílico e da aguarela sobre papel, com algumas colagens. Mas a essência da sua pintura reside - como os demais artistas dessa vaga da diáspora - nessas figurações expressionistas, e abstractas, cheias de empastes, manchas, sobreposições de linhas, de riscos grossos e finos, de temas grumosos e tridimensionais, que conferem texturas e estruturas especiais aos quadros; bem como nas famosas transgressões figurativas, nas deformações e geometrismos abstractos, ou explosão de cores, que estão em consonância com os grandes dominadores dessas técnicas-estéticas, como um Kline, um Klimt, um Wols, um Kandinsky, um Pollock, um Kooning, etc. Entretanto, ele detém uma particularidade interessante. Os seus abstraccionismos não são, na sua maioria, propriamente abstractos, na medida em que podemos descortinar, quase sempre, no meio do aparente caos de cores e linhas sinuosas e rectilíneas, figuras bem delineadas e expressivas, portadoras de um conteúdo latente e significativo. Ele faz um jogo de cintura, apelando à descoberta, ao utilizar realidades diversas disfarçadas em pseudo abstraccionismos que discorrem entre o visível e o invisível, o perceptível e o imperceptível. A par de tudo isso, encontramos ainda uma linguagem simbólica, interactiva e impressiva que nos chama a atenção e nos lança um repto. As figurações diluídas em florestas de cores resplandecentes sobre fundos escuros, ou de cores baças e negras, ganham um contorno de mistério lúdico e de indagação necessária.
Ele utiliza um festival de cores, entre tons quentes e frios, para veicular a sua mensagem, que se encontra em geral polarizada num princípio dual, dialógico, de forma a provocar uma harmonia entre os contrários e um equilíbrio entre os extremos. É de se acrescentar que a crescente tendência para a representação do onírico, do fantástico e do absurdo, ao lado de um certo erotismo, patentes na última vaga de pintores cabo-verdianos, mostra que Cabo Verde possui neste momento uma plêiade de pintores bastante heterogéneos, tanto no domínio da técnica como no da temática, que abrangem desde expressões e linguagens realistas, surrealistas, concretistas, etc., e que retratam todos os quadrantes da sociedade cabo-verdiana – social, político e religioso, como ainda questões metafísicas e filosóficas.